terça-feira, 5 de junho de 2012

Artigo publicado no jornal O Escritor, da UBE-União Brasileira de Escritores

ELUCUBRAÇÕES E CARAMINHOLAS SOBRE A ADOÇÃO DE PALAVRAS ESTRANGEIRAS PELA LÍNGUA PORTUGUESA, DESDE A INVASÃO MOURA


Betty Vidigal



Um projeto de lei de autoria do então deputado Aldo Rebelo (PC do B) pretendia punir, com multas ou com a imposição de serviços à comunidade, o uso de palavras estrangeiras em produtos, nos veículos de comunicação e na publicidade. Segundo reportagem no jornal O Estado de S. Paulo (26 de março de 2000), o deputado alegava que "corremos o risco de comprometer, quem sabe até truncar, a comunicação oral e escrita com o nosso homem simples do campo, não afeito às palavras e expressões importadas." Eu gostaria muito de ver um homem simples do campo tentando entender esta afirmação, em que nenhuma palavra estrangeira foi usada. Acho bem mais fácil que esse homem simples saiba o que é um gol, do inglês goal, palavra que adotamos quando ninguém tinha preocupações xenófobas e pôde, portanto, se ajustar à nossa língua, assumir grafia nossa e tornar-se mais utilizada e compreendida em qualquer canto do Brasil que muito vocábulo de origem latina, africana ou indígena.

Quando José Saramago esteve em São Paulo, abriu sua palestra no SESC Vila Mariana contando que, ao chegar ao hotel em que estava hospedado, disseram-lhe que iriam checar a reserva do apartamento que ocuparia. Saramago já tinha detectado no trajeto entre o aeroporto e o hotel uma influência excessiva da língua inglesa nos nossos... out-doors, e ficou impressionado. Em Portugal ninguém usa o verbo checar. Lá não se checa nada: verifica-se. Eu, que esperava que ele fosse dar como exemplo da influência estrangeira expressões escancaradamente inglesas, como as tão criticadas delivery e fast-food, também fiquei impressionada. Uso checar com a mesma naturalidade com que uso garagem ou garçom, sem nem me lembrar, quando as uso, que uma tem origem inglesa e as outras duas vieram do francês.

Chegando em casa, fui... checar. Comecei pelo guru Eduardo Martins, opinião que respeito muitíssimo. No Manual de Redação e Estilo do Estado de S. Paulo, de sua autoria, a palavra checar aparece entre aspas, com a advertência: “anglicismo a evitar”. (Ninguém considera garçom galicismo a evitar). Depois fui ao Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Hollanda, onde checar consta como “brasileirismo”. Curiosamente, no verbete checagem, o exemplo citado por Aurélio é tirado justamente de outro jornal paulista, a Folha de S. Paulo: “...ao final do processo de checagem, com absoluta segurança de sua veracidade.” No Dicionário Caldas Aulete de 1958, entretanto, checar está desacompanhado de ressalvas. Pelo jeito, em 58, ainda se podia checar qualquer coisa sem peso na consciência.

É claro que ninguém precisa dizer a um brasileiro de onde vem essa palavra. Sua origem é óbvia: to check, em inglês, escancara-se diante de nós. No entanto, a palavra aceita em Portugal e no Brasil (como no resto do mundo) para designar aquele pedacinho de papel que autoriza um banco a tirar dinheiro de nossa conta e transferi-lo para outrem é cheque, que também, como nos informa o Aurélio, vem “do inglês cheque e do norte-americano check” (assim como há brasileirismos, distinguindo o português falado e escrito aqui do português de Portugal, há americanismos, em que os colonizados se distinguem dos colonizadores ingleses. Sim, americanos também são colonizados!). Por que será que cheque é palavra legítima em português, usada sem ressalvas, tendo vindo do mesmo check inglês? Por que repudiar checar e sancionar cheque? Onde fica o limite entre o que é aceito, consensualmente, em Portugal e no Brasil, e o que é espantoso, para Saramago, e deve ser evitado, segundo Eduardo Martins?

Será que a única coisa que faz de cheque a palavra certa para designar uma ordem de pagamento à vista e  faz de checar um estrangeirismo tolo é o fato de que um termo 'pegou' em Portugal e o outro só no Brasil? Se for isso, teremos que nos manter constantemente antenados (outro neologismo, pelo menos com essa conotação) com a matriz, para saber como falar. A matriz sendo, no caso, Portugal.

Em 1958, quando aquele Caldas Aulete foi publicado, nossos avós ainda pronunciavam chauffeur, restaurant e ballet com sotaque francês. Hoje dizemos chofer, restaurante e balé. Não me lembro de jamais ter ouvido, dos defensores da língua, a exigência de que digamos motorista, comedouro ou... como será que se diz balé sem usar estrangeirismo?

Hotel, palavra difundida internacionalmente, é a francesa hôtel. Mas diz-se e escreve-se hotel nos países de língua inglesa, sem complexos, e é também a palavra que se usa em Portugal, embora haja palavras em português que a substituiriam perfeitamente (assim como verificar substitui checar): hospedaria, por exemplo. Abat-jour foi transformada em abajur sem que nenhuma voz nacionalista protestasse contra o desaparecimento de quebra-luz. É quase como se a origem francesa revestisse de charme uma palavra, autorizando seu uso, mas a origem inglesa fosse pecaminosa.

Charme, aliás, é uma excelente palavra para se analisar. Francesa, não é mesmo? Os sinônimos que o Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Hollanda nos dá para charme são modestos: atração, encanto, sedução, simpatia. Convenhamos: nada disso tem as conotações... charmosas... que charme tem. Será que não temos palavra para isso na nossa língua?

Ah, sim. Conotações glamurosas (para usar a grafia que aparece no Aurélio. Eu esceveria glamourosas.). Mas glâmur (também usando a grafia do Aurélio: observem o circunflexo sobre o “a”) é outra palavra estrangeira. Francesa? Não! Um pedantismo às avessas transformou glâmur em glamúr, pronunciada como se fosse, sim, francesa e rimasse com l´amour. Mas glamour é palavra inglesa. Escocesa, para ser precisa.

Por que será que sua pronúncia se alterou? Ainda há poucos anos todos diziam glâmur: na Sociedade Harmonia de Tênis, em São Paulo, havia anualmente o baile da Glamour Girl, em que uma moça era escolhida como representante dessa qualidade intraduzível em palavras da nossa língua, e nessa época ninguém dizia “glamúr”, como dizem hoje os estilistas e os pretensos grã-finos, fazendo biquinho.

Será que não temos, mesmo, palavra nenhuma que expresse isto, “o charme e o veneno da mulher brasileira”? Quarenta anos atrás dizia-se que ela tinha it (pronunciada ite). Outra palavra inglesa. Parece que não temos, mesmo, nada que substitua os estrangeirismos, pelo menos neste campo. Impossível imaginar de onde veio esse uso de it: do inglês é que não foi. Provavelmente a pessoa que pela primeira vez usou esta expressão estava traduzindo ao pé da letra “she has it” como “ela tem it”. Mais uma vez vamos ao Aurélio: “it. [Inglês], [gíria], substantivo masculino, magnetismo pessoal, encanto”. Este significado jamais ocorreu aos organizadores dos dicionários ingleses. It, em inglês, significa muita coisa, mas decididamente não é sinônimo de glamour. Numa construção do tipo “she has it”, o Oxford Dictionary define o uso de it como “vague object, with transitive verbs”. Vague object,“objeto vago”, é figura gramatical inexistente em português, e por isso mesmo a expressão “she has it” é intraduzível.

Voltemos ao glamour (glâmur! Tira já esse biquinho!). Se os escoceses antigos tivessem com relação aos estrangeirismos os mesmos pruridos que tem o deputado, a palavra não existiria. Porque ela veio... do latim! Traduzindo diretamente do Webster´s Word Histories:

"Glamour - Na antigüidade clássica, os ancestrais gregos e latinos da palavra inglesa grammar eram usados não só para indicar o estudo da linguagem mas também o estudo da literatura em seu sentido mais amplo. No período medieval, o significado da palavra latina grammatica e de seus derivados foi ampliado para assumir o significado de aprendizado, de um modo geral. Já que todo aprendizado era feito numa linguagem que a população iletrada não falava nem compreendia, acreditava-se que assuntos como magia e astrologia deveriam ser incluídos nesse sentido mais amplo de grammatica. Os eruditos eram vistos com uma mescla de respeito e desconfiança pelos outros homens, posição que certamente tornou mais plausível às platéias dos teatros o comportamento do  Dr. Fausto, de Christopher Marlowe ( (1563-1593), e de Roger Bacon, de Robert Greene (1560-1592), personagens que lidavam com o demônio e dominavam a magia negra. A conexão entre gramática e magia aparece em diversas línguas e, na Escócia, por volta do século XVIII, a forma grammar foi alterada para glamer ou glamour, com o significado de feitiço ou encantamento. Ao difundir-se o uso de glamour, a palavra passou a significar “uma atração ilusória, misteriosa e excitante, que estimula a imaginação e nos atrai pelo inconvencional, o inesperado, o exótico”. Hoje o significado é simplesmente o de “uma fascinante capacidade pessoal de atrair."



Se os escoceses tivessem pensado em multar quem usasse palavras latinas, nós hoje nem teríamos como designar essa fascinante capacidade de atração. Observo que mesmo nos filmes americanos a palavra glamour é freqüentemente pronunciada como se rimasse com l’amour, em geral por algum personagem caricatural, acompanhada de floreios de mão. Os próprios anglo-saxões esquecem-se de que a palavra é inglesa: ela tem mesmo cara de francesa.

Enquanto isso, charm, de origem francesa, foi adotada pelos ingleses com o significado, segundo o Oxford, de “objeto que tem poder oculto de atrair amor ou admiração; quinquilharia usada como amuleto”. Como verbo transitivo, to charm significa “sujeitar a um feitiço, enfeitiçar, proteger por magia”.

Nos dicionários franceses de 40 anos atrás a palavra glamour não aparece! Ou seja: nem existia! Nos atuais, aparece como palavra de origem inglesa. Os franceses, portanto, pelo menos, sabem que a palavra não lhes pertence.

Mas parece-me que os puristas que gostariam de multar quem usa termos estrangeiros incomodam-se não tanto com essas palavras quase literárias, legitimadas pelos muitos anos de uso, mas principalmente com os termos técnicos utilizados em economia e em informática, ou com as palavras que indicam uma american way of life. Nesta última categoria incluir-se-iam fast-food, delivery, sale, 50 percent off, world music, dance music, house music, techno, pop, jazz.

Vamos dar uma olhada nessa lista de estrangeirismos. Techno vem do grego téchne-es (quem diria! Os gregos antigos já tinham tecnologia!)... Não deve, portanto, ser banida! Ou deve? Até onde deve ir o nosso purismo? Devemos chegar ao ponto de extirpar do vocabulário as palavras gregas? Ou será que os romanos é que deveriam ter feito isto, séculos atrás, para proteger sua língua? Music chegou aos anglo-saxões vinda do nosso latim (musica-æ) e dance, diz o Oxford, do francês. O Aurélio não menciona nenhuma origem estrangeira para dança. Mas, antes da última reforma ortográfica – e como estragou o português, cada uma das reformas ortográficas! – dança, substantivo, escrevia-se com cedilha, e dansar, verbo, com s. Exemplo: “De um lado, a eterna estrêla, / e do outro a vaga incerta, // meu pé dansando pela / extremidade da espuma / e meu cabelo por uma / planície de luz deserta.” (Cecília Meireles, “Canção Quasi Inquieta”, Vaga Música, Pongetti, 1942. Mantive a grafia da edição original, e o grifo é meu.). Seria muito útil que se tivesse mantido essa distinção numa língua como a nossa, que tem a figura do sujeito oculto (que não existe nem em inglês nem em francês, assim como o objeto vago não existe em português), para podermos simplesmente escrever “Dansa” ou “Dança”, sabendo que se trata, no primeiro caso, da descrição do que alguém está fazendo ou de uma ordem dada a quem se tuteia e, no segundo caso, da arte que consiste em interpretar música através de movimentos do corpo. Afinal, temos ainda o substantivo viagem e também viajem, terceira pessoa do subjuntivo do verbo viajar. (Um professor de russo, que considera o português língua dificílima, disse certa vez: “subjuntivo, senhora, só para eruditos”).

E Pop?  Vem de popularis-e, latim. Aparentemente, os anglo-saxões não têm e não tiveram a preocupação rançosa da pureza da língua, e isto talvez tenha sido o que tornou a língua deles tão mais rica que a nossa. Gostamos de acreditar que nossa língua é riquíssima, mas não se pode discutir com números. O vocabulário inglês tem quase 3 vezes mais palavras que o nosso. Um exemplo? Nós, povos de língua portuguesa, sorrimos... e pronto. Não há nuances. Podemos rir, podemos gargalhar, mas um sorriso é apenas um sorriso: se for mais que isso precisaremos descrevê-lo com muitas palavras. Em inglês há uma palavra para cada tipo de sorriso, fora o simples smile: há sneer, que no Exitus Dictionary of the English and Portuguese Languages, de Antonio Houaiss e Catherine B. Avery, figura como “sorriso zombeteiro ou desdenhoso”; smirk, “sorriso afetado ou fátuo” (no mesmo dicionário); grin, “sorriso largo, arreganhando os dentes” (idem). E, assim como há uma palavra para cada tipo de sorriso, há em inglês palavras para indicar nuances de sentimentos, filigranas que faltam na nossa língua. Certamente o fato de que o inglês recebeu sem preconceitos todos os vocábulos que lhe chegaram, vindos do latim e de outras línguas, contribuiu largamente para essa riqueza. Tom Jobim, quando verteu para o inglês a letra de Águas de Março, propôs-se um exercício de linguagem: não utilizar nenhuma palavra de origem latina. Não é fácil. O inglês tem praticamente um sinônimo que 'latino' para cada palavra anglo-saxônica.

Essa convicção de que palavras francesas são sofisticadas e portanto autorizáveis, enquanto quase se pedem desculpas por usar as inglesas, está tão arraigadamente embutida nas consciências do redatores brasileiros que certamente nem notam quando cometem alguns disparates preconceituosos. A Veja nº 1651, por exemplo, diz, à pg. 90, num mesmo parágrafo: “...a sedutora Tatiana de Uga Uga conta com uma personal stylist encarregada de escolher seu guarda-roupa.” e “... não dá um passo sem acionar uma entourage de fazer inveja a muita princesinha européia.” Por que razão "personal stylist" está em itálico e "entourage" não? Talvez porque entourage esteja no Aurélio? Entretanto, já que não se pronuncia como se escreve, e sim anturráj (a pronúncia também está grafada no dicionário!), não seria o caso de ser classificada entre os execrados estrangeirismos e, portanto, receber caracteres em itálico?

Se for para multar a má utilização da língua, que se multem erros gramaticais, começando pelas vírgulas que separam estapafurdiamente o sujeito do verbo, como, por exemplo, no slogan do Shopping Jardim Sul: “O Shopping que você sempre quis, existe”. (Não escrevi slogan em itálico, acima, porque consta do Aurélio. Talvez tenha sido essa a justificativa para entourage não estar em itálico na Veja.) Aquela vírgula entre o sujeito – “o shopping que você sempre quis” – e o verbo é resultado da equivocada tradição de se ensinar às crianças, nas escolas primárias, como dica de boa leitura, que se deve “respirar a cada vírgula”. Aliada à incapacidade de perceber o que é, afinal, o sujeito de uma sentença, quando ele se compõe de mais de uma palavra, essa regrinha faz um belo estrago. Fazendo o raciocínio inverso, brasileiros pouco letrados inserem uma vírgula sempre que acham que gostariam de respirar.

Multem-se, depois das vírgulas intrusas, as crases indevidas. E os erros de ortografia: multe-se concertar com c, como estava em 8 de junho na Folha de S. Paulo, no caderno Folha Equilíbrio, pg. 2: “Se o problema for com meu carro, mando concertar”; e multe-se o uso de palavra cujo significado o autor do texto desconhece, como hegemonia, no Estadão de 31 de maio, em chamada para a matéria em que Lauro Machado Coelho fala sobre falta de homogeneidade na apresentação dos cantores líricos Richard Leech e Maria Guleghina. Quem escreveu a chamada achou que hegemonia e homogeneidade são sinônimos. Folha Ilustrada de 9 de junho, pg. 2: “Gil foi farrear na pré-estreia de “Eu Tu Eles”, do qual é autor da linda trilha.” Custava usar um cujo? A construção correta é: “De cuja linda trilha é autor”. Cujo é coisa misteriosa para muito brasileiro. Na mesma Ilustrada, no artigo Harvard discute a Internet, aparece: “Entre as palestras que assisti...”. Será que nem mesmo quem escreve bem sabe quando deveria dizer “a que assisti”?

Diante de tantos erros de português, por que multar o plurilingüismo? Bem melhor usar corretamente palavras estrangeiras, associadas a um português correto, do que escrever monoglotamente em um português cheio de erros. Devemos punir os poliglotas? Parece bastante medieval, isso de se punir o conhecimento, dando à ignorância uma aura de santidade. Punir o uso de palavras estrangeiras para que o “homem simples do campo” entenda o que dizemos a quilômetros de distância, na parte cosmopolita do Brasil, enquanto, nas áreas rurais, sob as barbas desse homem simples, os fazedores de leis estendem-se em discursos verborrágicos que o mesmo homem do campo não compreende

Há palavras que eram erradas e deselegantes há poucos anos e agora constam do Aurélio. Exemplo: desconfortável. O antônimo de confortável é inconfortável. Mas dizia-se, vulgarmente, desconfortável, palavra horrorosa, que parece referir-se a coisa que já foi confortável e deixou de sê-lo. Antes podíamos argumentar que desconfortável não consta do dicionário. Agora não se pode mais: passou a constar. Tenho ouvido chamar névoa de neve, e “aviso prévio” de “aviso breve”. A maioria dos brasileiros hoje diz “tinha pego”, em vez de “tinha pegado”, que seria o correto. Já que se diz “foi pego”, fica difícil fazer o “homem simples” entender por que razão “tinha pego” é errado. Pior: inventaram um famigerado “tinha chego”, por analogia. Nada disso, no entender do deputado Rebelo, merece multa. Mas um restaurante que se chame “Thank God It´s Friday”, por exemplo, provoca-lhe indignação.

Enquanto isso, há palavras sendo criadas, não pelos brasileiros que passam férias em Miami, mas pelos que nem sequer vão à escola. Outro dia surpreendi-me com a palavra beta, utilizada de forma inesperada por uma criança, num documentário sobre o analfabetismo no Brasil. Logo em seguida, no mesmo filme, outra pessoa usou a mesma palavra. Percebi então que ela está difundida em determinado segmento da nossa sociedade, embora ainda não tenha chegado a nós, os alfabetizados. Infelizmente não me lembro de nenhum dado concreto que identifique esse documentário: nem o título, nem o nome do autor e nem sequer qual o canal de TV que o exibiu. Mas a criança, uma menina encantadora, dizia, olhando séria para a câmera: “Minha mãe me colocou na escola, mas não me leva. E eu quero ser beta, quando crescer...” Ali, diante dos nossos olhos, uma nova palavra estava sendo registrada: beta, aquele que não é analfa... Mas logo em seguida vi que aquilo não era novidade: uma mulher de meia-idade também dizia “acho lindo ser beta, eu queria ser.”. Logo esta será uma palavra legítima, e não há nada errado nisso: língua é coisa dinâmica mesmo, e é mais freqüente que evolua a partir do assim chamado povão do que a partir da elite (embora a elite também seja povo, queiram ou não). Se nada podemos contra esses neologismos, se serão mesmo incorporados à nossa língua, mais cedo ou mais tarde, por que a resistência a outros neologismos, aos que vêm de fora, principalmente quando se referem a coisas que não existiam há dez anos? Para coisas novas, palavras novas! E se adotamos tecnologia desenvolvida por estrangeiros, por que não usar as palavras que eles criaram para designar as inovações que nos trazem?

Assim se faz, então, a evolução de uma língua: em parte através do uso errado de uma palavra, que se divulga e se generaliza; em parte pela influência das línguas dos povos com os quais se tem contato; e em parte com neologismos criados para designar coisas novas, que acabaram de ser inventadas (nestas, o século que passou foi pródigo). Por que impedir esse processo, pretendendo engessar o português do Brasil?

Tornar-nos-emos o único país a escrever endereços de internet precedidos de “rg” em vez de “www”? Rede Global em vez Worldwide Web? Tomei um exemplo talvez drástico, mas com a finalidade de mostrar o disparate dessa posição purista. Afinal, não seria a primeira vez que estaríamos em posição de exceção: somos o único país de língua latina onde a Síndrome da Imuno-Deficiência Adquirida se chama AIDS, à inglesa. Nos outros, é SIDA. Claro que isso não ocorreu por sermos “colônia” dos Estados Unidos, mas para proteger as muitas Cidas brasileiras. Gentileza que ninguém pensou em ter para com os Bráulios, mas isto é outra estória.

Sou uma internauta, tanto quanto se pode “ser” alguma coisa deste tipo. Claro que dizer “sou internauta” não é como dizer “sou mulher” ou “sou morena”, atributos que tenho desde que nasci e não deixarei de ter enquanto for viva. E é claro que dentro de 10 anos ninguém dirá de si mesmo “sou um internauta”, assim como ninguém diz que “é um ouvinte” por ouvir rádio (nota: este artigo foi escrito no ano 2000). Mas, hoje, minha afirmativa tem sentido. Ainda são poucos, relativamente, os internautas. Liguei-me à rede em 97; conecto-me todos os dias e hoje, com cable modem, fico conectada o dia inteiro. Nesse ambiente, usam-se palavras inglesas o tempo todo. Por que deveríamos inventar palavras portuguesas novas para designar coisas que já têm um nome que todos os usuários conhecem? E vamos nos desfazer dos verbos abrasileirados que surgiram a partir de palavras inglesas? Como diremos clicar? Quero continuar atachando arquivos, quando necessário. Sei que posso anexá-los: mas entre atachar e anexar, tenho certeza de que o homem simples do campo escolheria atachar: é mais fácil de dizer. Procurando, dia destes, um determinado site português, encontrei a seguinte mensagem: “Não existe nesta morada o ficheiro INDEX.HTML. Se conhece o marujo ou maruja autor desta página, avise-o do facto.” Digam-me, brasileiros: queremos mesmo passar a falar assim? Chamar arquivo de ficheiro? Chamar site de morada? Chamar marujo ou maruja àquele que “navega” pela internet, simplesmente por analogia com o ato de navegar?

Sejamos sensatos. Deixemos que a língua se adapte. Podem ter a certeza de que não estamos “falando inglês”: o modo como usamos as palavras inglesas, transformando os advérbios e adjetivos dos britânicos em substantivo, já faz um abrasileiramento grande. Exemplos? Outdoor. Está no Aurélio: “vem de outdoor advertising”. Outdoor, sozinho, nos Estados Unidos ou na Inglaterra, não tem o mesmo significado que tem entre nós; não designa os cartazes coloridos que se vêem nas ruas: significa qualquer coisa que não esteja entre quatro paredes. E “Shopping”? Lá, ninguém “vai ao shopping”, porque não é um substantivo, como ficou sendo aqui. Shopping não é um “lugar”. Ou é um qualificativo do tipo de Center a que nos referimos, ou é gerúndio do verbo to shop. Só tem o sentido que lhe damos aqui se for usado como Shopping Center. Mas lá ninguém diz isso: lá, a palavra utilizada para designar esses centros de compras é mall.

O gramático Evanildo Bechara nos tranqüiliza, no Estadão, ao dizer que "o sistema lingüístico não é feito apenas do vocabulário, ele é composto também pela concordância, pela conjugação de verbos, pela ordem das palavras. Podemos até adotar algumas palavras do vocabulário estrangeiro, mas nos apropriamos delas e fazemos algumas alterações."

O lingüista americano Steven Fischer diz, em entrevista à Veja, que em 300 anos o português desaparecerá, por influência do espanhol. É mero exercício de futurologia, sem risco nenhum, já que não estaremos aqui para constatar a concretização dessa profecia. Se posso escolher, prefiro desaparecer sob influência de uma língua com mais recursos que a minha, não uma que é quase igual.

Mas tenho enorme dificuldade em acreditar que o português desaparecerá. Mais fácil crer que será diferente, mais rico, mais amplo.

Hoje, as palavras que usaremos daqui a 10 anos para nos referir à comunicação pelo cyberspace (espaço cibernético?) ainda estão se formando. Nós as estamos criando.

Neste momento, a rebeldia dos puristas concentra-se na luta contra o uso de e-mail e de site. Propõem que digamos endereço eletrônico, correio eletrônico, sítio. No mundo todo se diz e-mail. Seremos o único país forçando seus habitantes a usar uma longa e incômoda expressão por questão de orgulho nacional. É verdade que em Portugal dizem rato em vez de mouse, e tapete do rato em vez de mousepad. Por outro lado, lá o “@” dos e-ndereços pronuncia-se tanto como “at” quanto como “arroba”, como dizemos aqui (gosto de chamar os endereços de e-mail de e-ndereços; é uma invenção minha, mas por que não? Afinal, tudo é novo nesse campo e por enquanto ainda tem de ser permitido inventar, até que as palavras se sedimentem e consolidem). O símbolo @ já significava at em inglês há muito tempo; não se trata de novidade criada pela internet. Ou seja: para algumas coisas usam-se em Portugal palavras inglesas; para outras, nós é que as usamos. A verdade é que o inglês é uma língua mais compacta – quase sempre. E nós, humanos, temos essa tendência de fazer o que é mais fácil, usar o caminho mais curto. A famosa lei do menor esforço, que nenhum deputado precisou escrever. É mais fácil dizer e-mail que dizer correio eletrônico, assim como é mais fácil dizer “Era uma vez uma velhinha...” do que dizer “Once upon a time there was little old lady...” Pela lei do menor esforço, não corremos o menor risco de que a influência inglesa venha a alterar a linguagem dos contos infantis, mas a globalização talvez leve os povos de língua inglesa dizer “Era uma vez”, daqui a 300 anos, assim como tenho ouvido americanos e ingleses residentes no Brasil dizerem “aproveitar” no meio de uma frase em inglês, simplesmente porque é muito mais prático do que dizer “to take advantage of”.

Consultei amigos portugueses sobre o uso de expressões inglesas em Portugal: uma moça que esteve em São Paulo há pouco tempo disse-me que viu aqui menos cartazes em inglês do que lá. Anotei alguns depoimentos, em resposta à minha pergunta: “Usam-se expressões inglesas aí?”. Respostas: “No Algarve usa-se demais!” (afirmativa a que outro português retrucou dizendo “Mas o Algarve não é Portugal”, provocando muito riso). Outra: “Vocês no Brasil utilizam muito menos... Mas há palavras do vosso vocabulário, estrangeirismos, que aqui nós não usamos, temos palavra própria.”. E esta: “Olha, entrando num liceu, a gente ouve a malta falar e deduz. Passas nos restaurantes e vês os cartazes com estrangeirismos: palavras, mas não frases, em inglês.” “Usa-se muito, sim. Por exemplo: ‘VENDE-SE FOR SALE’. Sabes como o povinho lê? ‘Vende-se fora a sala.’”

Estas respostas foram dadas num chatroom (ai, como deveremos passar a chamar os chatrooms? "Salas de bate-papo"? Tudo isso?!). Uma das moças portuguesas que estava conversando comigo despediu-se dizendo: “Vou dar de frosques....Tenho imenso trabalho”. Dar de frosques?! Que será isso? Deduzi que deve ser algo como “dar o pira”, que é um brasileirismo. Mas se podemos ter brasileirismos como “dar o pira”, por que não podemos ter brasileirismos como checar? Se a preocupação é com a unidade da língua portuguesa, a ameaça para essa unidade é a mesma, num caso ou noutro. Deveríamos passar a “dar de frosques”, em nome da unidade?

Exijo que minha língua seja usada corretamente; faço questão de reclamar quando não o é. Mas, no que diz respeito a novas palavras, quero liberdade para experimentá-las, rolá-las na língua e no papel, digitá-las e pronunciá-las como for mais conveniente no momento, na certeza de que em breve o português falado no Brasil as acomodará como legítimas e então terão uma grafia padronizada – e também na esperança de que, assim como dizemos futebol e não ludopédio, e sequer nos lembramos de que o nome para esse esporte tão brasileiro veio de football, poderemos algum dia reloudar (e não recarregar) uma página de internet (ou de internete, como tenho visto, às vezes; mas, por favor, não de interrede). E reloudar será um verbo tão brasileiro quanto eu (e isto é ser muito brasileiro!).

Também não tenho nada contra a grafia imeil, como tenho visto às vezes. Afinal, se penalty transformou-se em pênalti, por que não? (Enquanto penalty em inglês significa genericamente penalidade, aqui pênalti aplica-se exclusivamente a um determinado tipo de penalidade, dentro de um determinado tipo de jogo...)

Reclama-se tanto de “deletar”! Ora, deletar é simplesmente um verbo que nossa língua esqueceu-se de ter, já que o delete inglês veio de deleo-ere, latim. Ainda é tempo de corrigir esse nosso esquecimento. Deletar tem um som muito mais bonito que apagar. É verdade que apagar é perfeitamente utilizável em todas as situações em que se usa deletar, mas que mal faz um sinônimo a mais? É enriquecedor.

O que deve nos chocar, no jargão da informática, não são os estrangeirismos, mas as traduções ruins e já sacramentadas, como “salvar um arquivo”, quando deveríamos dizer “arquivar”. Contra esta lutei muito, mas em vão: já está em todas as traduções e programas da Microsoft para o português, como submenu de “Arquivo”, e agora é tarde. E, pensando bem, que dizer de menu, hein? Palavra francesa. Usada nos Estados Unidos e na Inglaterra, tanto quanto aqui. Vale a pena ler no Webster´s a origem de menu, mas não vou me estender tanto.

E quanto a fast-food, delivery, self-service? Como dizê-las em bom português? Ah, sim: podemos subsituir fast-food por refeição rápida. (Parece ruim: tão ruim quanto substituir e-mail por correio eletrônico. Para fast-food temos uma excelente palavra: lanche. Que, aliás, também é palavra inglesa. Só que faz tanto tempo que a usamos que já foi redimida do pecado de ser inglesa e teve a grafia lunch aportuguesada. Se é esse o problema, é só passarmos a escrever festefude, e ficamos acertados. Lembrando que, como em tantos outros casos, lunch é mais uma palavra cujo significado modificamos, ao adotá-la. Em inglês significa almoço, e não lanche.. A uma refeição rápida, eles chamam snack. Merenda. (Vamos “merendar”? Que tal?). Recentemente, nas lanchonetes populares, "lanche" passou a significar "sanduíche". Quanso peço um Mc Fish, sempre escuto: "É só o lanche? Não vai beber nada?".

Self-service tem sofrido uma transfomação curiosa: quem freqüenta restaurantes no interior do Brasil, em que alguns garçons semi-alfabetizados têm dificuldade em dizer “servir” e dizem “selvir”, já deve ter ouvido chamarem o serviço de bufê (buffet, francês, lembrem-se! ), o auto-serviço, enfim, de selve-selve. (É mais ou menos o mesmo mecanismo que transformou a chave disjuntora, tipo quick-lag, em clic-clec, no jargão dos eletricistas.)

E delivery? Vamos proibi-la, sabendo que seremos agredidos por “entrega à domicílio”, com crase e tudo, em cada folheto de pizzaria? Ou será mais sensato esperar que os anos transformem-na, aos poucos, em delíveri? Ou delivere, seguindo a regra que quer que digamos recorde? (Segundo o falecido Napoleão Mendes de Almeida, “ao povo repugnam as forma proparoxítonas”, razão que ele considerava suficiente para que se imponha recorde em vez de récorde, e para procurar estender esta regra a outras palavras: tíquete, por exemplo. Dizia ele que deveríamos dizer tiquete, paroxítona, assim como dizemos soquete. Esquecia-se o gramático que soquete veio do francês soquette, o que torna razoável que seja paroxítona. Mas tíquete nos veio do inglês (e foi para o inglês do teutônico, v. Oxford. O Oxford distingue origem teutônica de origem germânica). Soquette transformou-se em socket, em inglês, apesar de a lâmpada elétrica não ter sido inventada por um francês. Mas socket em inglês tem outros significados, como, por exemplo, a cavidade em que se encaixa o olho. A curiosidade é que soquette gerou duas palavras, em português, com pronúncias diferentes: se se trata do soquete de uma lâmpada, pronunciamos a sílaba tônica como ê, fechado, mas no caso das meias soquete o e se torna aberto. Ah, a falta que fazem os antigos acentos que diferenciavam as palavras! Êle e ele. Olho e ôlho. Leste e lêste. Parece-me que, toda vez que leis mexem com a língua, pioram alguma coisa, a pretexto de simplificar, de facilitar a vida dos pouco instruídos.

Mas, voltando ao que dizia: argumentei com o professor Napoleão, a respeito da pretensa repugnância do povo às proparoxítonas, que é “logíco que o povo acha otímo que os gramatícos tenham como uníca preocupação essas questões grafícas”. Acentuei as palavras só para chamar a atenção; já que na grafia contemporânea não se acentuam palavras paroxítonas, a não ser em casos raros como o das que terminam em u ou i, ou num caso como o de pára... E fiz questão de brincar com palavras que qualquer brasileiro usa sem dificuldade, enquanto conversa na fila do ônibus: lógico, ótimo, único....).

Qual será o procedimento que a xenofobia recomenda que se adote com relação às palavras que nos vieram de dialetos africanos, e que não se usam em Portugal? Vamos bani-las, também, em nome da unidade da língua? Ou essas, por questão de correção política, são intocáveis? E as que chegaram ao português na época da dominação moura? Vamos ter que viver sem palavras como almofada, alface, alicate? Ou será o caso de definir uma data a partir da qual vocábulos advindos de línguas estrangeiras deixam de ser permitidos, mas antes disso 'pode tudo'? Ou ainda, por outro lado, será o caso de determinar que apenas palavras inglesas devem ser multáveis, numa atitude de rebeldia contra a nação mais poderosa do planeta? Há até quem defenda que o tupi seja adotado como língua oficial, com todos os seus 450 vocábulos

E que vamos fazer com palavras de origem alemã, italiana, ou mesmo que vieram do sânscrito? Blitz, ciao, mantra? Ciao já assumiu grafia brasileira: tchau. Até pouco tempo essa grafia só aparecia em textos informais, mas agora adquire status de grafia oficial: consta do Aurélio. Meu aparelho de som, nacional, ao ser ligado, exibe na tela de cristal líquido o cumprimento “Como vai?” e ao ser desligado despede-se: “Tchau”.

Meu livro “Contos para a Happy-hour”, ao ser “traduzido” para a edição portuguesa, em 1996, teve reação transformada em reacção, seqüela em sequela, irônico em irónico; teve um brasilerismo como marreteiro traduzido para ferro-velho. Mas a ninguém ocorreu mudar happy-hour para “hora do aperitivo” nem “hora dos drinques”. E, pensando bem, de onde foi mesmo que veio drinque?

Tenho certeza de que, se a deixarmos em paz, nossa bela língua se enriquecerá e em breve teremos palavras de origem inglesa tão brasileiras quanto um bom forró, que, como todos sabem, veio de for all, aquelas festas que os engenheiros ingleses das estradas de ferro promoviam para todos os trabalhadores (mesmo que alguns xenófobos mais xiitas queiram que não tenha sido esta a origem da palavra).

Minha língua é minha pátria, mas purismo exacerbado pode ser mais letal que a permissividade, mumificando uma língua em vida.


Bibliografia:

• “Abuso de estrangeirismos causa polêmica”, Ligia Formenti, O Estado de S. Paulo, 26 de março de 2000
• Folha de S. Paulo de 8 e 9 de junho de 2000
• O Estado de S. Paulo de 31 de maio de 2000
• Manual de Redação e Estilo, Eduardo Martins, OESP, 3a ed.
• Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Hollanda, 2a ed. Revista e ampliada, Nova Fronteira, 1998
• Dicionário Caldas Aulete, 1958
• Dicionário Latino-Português, Nicolau Firmino, 5a ed. revista e ampliada, Melhoramentos
• The Pocket Oxford Dictionary of Current English, 4th edition, Oxford, 1953
• Vaga Música, Cecilia Meireles, Pongetti, 1942
• Webster´s Word Histories, Merriam-Webster Inc. Publishers, 1989
• Gramática da Língua Portuguesa, Celso Ferreira da Cunha,11a ed., 2a tiragem, Ministério da Educação, 1986.
• Langenscheidts Taschen-wöterbuch, Deutsch-Portugiesisch, Ersten Teil, Langenscheidt
• Nouveau Dictionaire Français-Portugais, Mathieu Valadier, Portucalense Editora, Porto, 1953
• The Exitus Dictionary of the English and Portuguese Languages, Antonio Houaiss and Catherine B. Avery, Prentice-Hall Inc., 1983